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“Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer?”, pergunta Clarice Lispector, em A Hora da Estrela (2002).
Qualquer começo se faz pelo meio.
Meio como metade de uma totalidade, meio como ponto equidistante do princípio e do fim. Meio como ponto central. Meio como ambiente. Ter meios, ter possibilidade, ter veículo, ter ponte.
O começo nunca é uma totalidade. Qualquer começo se faz a igual distância do início e do fim de um pensamento. O começo é central. Começar é ter possibilidade de chegar a outro lado.
Começo a meio, começo pelo meio.
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Por exemplo. Por exemplo, o movimento do ponteiro dos segundos. Por exemplo, uma cadeia de montagem. Por exemplo, verificar várias vezes se o gás está fechado, antes de sair de casa. Por exemplo, uma pessoa com perturbação obsessivo-compulsiva, que repete compulsivamente comportamentos como forma de aliviar o stresse e a ansiedade causados por pensamentos obsessivos. Os seus gestos repetem-se? A tensão libertada é igual da primeira ou da quinta vez? O gesto parece idêntico, repetido. Repetido é o mesmo que repetitivo? Repetitivo parece mais exaustivo. O que acontece de cada vez que alguma coisa se repete? É possível repetir? É possível “pegar” numa palavra, num gesto, num desenho, num objecto, e repeti-lo? Uma pessoa, uma singularidade, nunca se repete? Por exemplo, o todo. Para a teoria Gestalt, ou psicologia da forma, o todo não pode ser conhecido por meio do conhecimento das partes que o compõem, uma vez que o todo é maior do que a soma das partes. A conjugação dos elementos, das partes, dão origem a um novo elemento. É a forma que sobressai quando observamos um objecto. Quando três pontos se repetem – . . . – não é a repetição de 3 pontos que vemos, mas reticências, por exemplo. Que relação tem a tendência da percepção em agrupar os elementos – em ver o todo não para além das partes, mas a partir delas – com a repetição?
Repetir. Tornar a dizer o que já se disse. Reflectir, repercutir. Chumbar. Tornar a principiar. Reproduzir. Reproduzir-se.
Se pensar demorada e persistentemente na ideia de repetição, chego a um sítio em que a repetição parece não existir. Para continuar na palavra. Por exemplo, o refrão de uma música. As mesmas frases, os mesmos versos que se repetem, mas poderão alguma vez ser iguais? Se são cantados num tempo diferente, se são escutados em tempos, consciência e percepção diferentes, alguma vez se repetem? Por exemplo, o baixo numa composição musical. Repete, repete, repete as mesmas notas, os mesmo acordes, a tal ponto que parece tornar-se imperceptível e, no entanto, parece dar a estrutura reconhecível à música. Cria uma espécie de continuidade, de chão, à variação que se lhe sobrepõe. Por exemplo, uma versão de “L.A. Woman”, dos The Doors, com o “baixo” em destaque (o grupo não tinha baixista, o som do baixo provinha das teclas de Ray Manzarek).
Por exemplo, caminhar, se não houver qualquer obstáculo a esse movimento. Um pé em frente ao outro pé, perna que flecte e avança, pé no chão, pé no ar, perna que flecte, avança, pé no chão, corpo que avança. O passo repete-se ao ponto de deixar de ser notado (a não ser que haja dor, dificuldade ou mesmo impossibilidade de caminhar). Passamos, com a passada, a dar atenção a quase tudo para além do passo em si – para onde vamos ou queremos ir, a paisagem, a velocidade, o objectivo de caminhar, uma espécie de embalo que permite ir para outros lugares, estados de consciência ou pensamentos. Repetir parece permitir um chão, uma estrutura. O que parece ser comum às diferentes repetições é o esvaziamento a que isso conduz. Ao mesmo tempo, parece abrir a possibilidade de mais e novos sentidos; o espaço-tempo fica mais preenchido, alongado. Por exemplo, o batimento cardíaco, inspirar/expirar, repetições fundamentais que permitem outras repetições. Diz-se que quando estamos nervosos, tamborilamos com os dedos na mesa porque isso reproduz o som do batimento cardíaco que ouvíamos quando no ventre das nossas mães. Repetir como forma de acalmar (e voltamos ao alívio do stresse, mas sem ser como compulsão), de transformar estados emocionais. Por exemplo, um martelo pneumático parece ter o efeito contrário ao efeito que associei ao passo ou ao batimento cardíaco. O som que se repete não vai desaparecendo, enfraquecendo com a repetição, levando-nos para longe dali (como tinha associado aos passos, por exemplo). Aí, a repetição do som torna-se mais invasiva para quem passa, rouba-nos os pensamentos, chama a nossa atenção para o ruído.
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Por exemplo, o nome próprio. Repetir o nome próprio dez vezes. O que se repete não é apenas a enunciação, o gesto de enunciar? Ou é o enunciado que se repete? E quando se repete, significa que é igual à vez anterior? Repetir o nome próprio, vezes sem conta, é dizer sempre a mesma coisa? O nível de percepção é o mesmo? Quando dizemos várias vezes o próprio nome, se o tom de voz é diferente, se o tempo de enunciação é outro, se a terra continuou a sua órbita em torno do sol, se vou ouvindo e pensando coisas diferentes à medida que repito o meu nome, se a minha percepção vai mudando, se a corrente sanguínea continuou o seu movimento, se o ar que inspiro é outro, se vou esvaziando de sentido a palavra repetida, se a velocidade de pronunciar cada sílaba se vai alterando; se outros movimentos e tempos acontecem, o que se repete, afinal, quando repetimos o nome próprio? Quando o repito muitas vezes seguidas, o nome parece desaparecer e eu pareço desaparecer com esse esvaziamento. O espaço-tempo fica mais preenchido com aqueles sons que se sucedem, mas o nível de percepção parece alterar-se.
Repete os nomes. O espelho reflecte-repete a própria repetição dos nomes próprios.
Repetição ao quadrado.
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Por exemplo, Sigmund Freud. Penso nos flashs de eventos traumáticos que se repetem. Penso no lembrar de sentimentos, experiências, pensamentos recalcados. Penso na necessidade de repetir uma história, um evento, para que ela se altere. Penso no conceito de transferência em psicanálise e como é a repetição dos eventos (desta vez face ao psicanalista) que permite alterar os sentimentos gerados pelos eventos recalcados. Freud, em 1924, disse que não podemos escapar à compulsão de repetir e que isso é, em última instância, uma forma de recordar, de “voltar” a um sítio (sentimento, pensamento) familiar. Essa compulsão à repetição é um desejo de voltar a um estado inicial, nem sempre bom – gerador de comportamentos ou pensamentos que têm impactos negativos –, mas que gera um certo “alívio” porque familiar.
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Por exemplo, Gilles Deleuze. Em Différence et répétition (1968), a sua tese de doutoramento, Deleuze defende que a repetição não é uma questão de uma mesma coisa acontecer uma e outra vez, estando, antes, ligada à produção de variação. Na repetição está o poder de transformação (puissance) e a possibilidade de reinvenção – a diferença (e aqui penso na duplicidade desta palavra: fazer diferente como não igual, mas sem carga valorativa, e fazer “a diferença”, com carga positiva; aquela pessoa “fez a diferença”, marcou o mundo, transformou-o). O resultado de uma repetição nunca é idêntico ao original, havendo diferença, mesmo na cópia. A repetição não é, portanto, a representação do idêntico (da unidade da identidade), pelo contrário, traz sempre o novo e o diferente. Só há repetição se dois entes ou acontecimentos idênticos (naquilo que neles é representado) forem distintos numericamente no tempo. Se a diferença caracteriza essencialmente o ser, apenas quando dois seres se repetem enquanto não idênticos (diferentes) é que essa essência é revelada. A repetição está, por isso, ligada à produção de singularidade e do diferente. A repetição diz respeito a uma singularidade não trocável, insubstituível; repete-se o irrecomeçável.
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Por exemplo, Jacques Derrida. Derrida parte do mito de Eco e Narciso para pensar a língua, a “experiência da própria língua, da singular anterioridade e espectralidade da língua de um outro, vinda de um outro que não por ele possuída”, como afirma Fernanda Bernardo em “Eco-grafias. Dar à língua: contra-assinatura, re-invenção e sobre-vivência” (2011). O Mito, segundo Ovídeo, em Metamorfoses: Eco seguia Narciso no seu passeio pelo bosque, admirando, ao longe, a sua beleza. Condenada por Hera a não poder dirigir-se a ninguém, possibilitada apenas de repetir, de responder quando a ela se dirigissem, Eco não podia abordar Narciso e seguia-o discretamente. Apercebendo-se da presença de alguém, Narciso pergunta: “Alguém aqui está?”, “Está”, respondeu-lhe Eco. Estupefacto, Narciso olha em redor e grita com quanta voz tem: “Vem!”. “Vem!”, responde-lhe ela chamando-o.
Derrida, em 2001, sugere que, tal como Eco, a nossa língua é sempre a língua de outro; que quando falamos, o fazemos como herdeiros dessa língua do outro; que estamos condenados a responder a alguém, diante de alguém e por nós mesmos. Podíamos voltar à citação de Clarice: começamos pelo meio. Quando falamos, fazemo-lo como repetição de algo já foi dito antes de nós. Não existe origem (arqué), mas uma secundaridade originária (ou repetição originária), isto é, falamos sempre “depois” de alguém, cada texto é sempre depositário de outros textos (intertextualidade). Não se trata de uma secundaridade passiva, já que existe acção, originando novos entendimentos. Como refere Roland Barthes em “La mort de l’Auteur” (1968), um texto é feito de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escritas variadas, nenhuma das quais é original: o texto é um tecido de citações. Para Barthes, um texto é feito de escritas múltiplas, saídas de várias culturas e que entram em diálogo umas com as outras, em paródia, em contestação; há, porém, um lugar onde essa multiplicidade se reúne, sendo que esse lugar não é o autor, mas o leitor. É no leitor que se inscrevem as citações de que uma escrita é feita, sem que nenhuma se perca.
Como tal, e seguindo a designação de Derrida, o leitor contra-assina o texto, aqui entendido em sentido lato, o que inclui imagens, por exemplo. O texto (não) pertence não só a quem escreve, mas a todas as pessoas que o lêem, incluindo o próprio escritor/a que o lê. Como afirmam Mireille Calle-Gruber e Marie-Louise Mallet, “estreitamente intrincados, os gestos de leitura e de escrita conjugam-se para fazer obra” (2003).
Aquilo que dizemos é sempre secundário, derivado, resposta ou eco do que foi dito antes de nós, herdeiro de outros textos e de outras línguas, mas ao dizê-lo com a nossa própria voz, com a nossa própria acentuação, com o nosso próprio ritmo – como fez Eco ao responder a Narciso, fazendo da repetição um novo apelo “vem!” -, apropriamo-nos e reinventamos a palavra herdada, imprimimos singularidade, falamos em nome próprio. Seguindo a lei da iterabilidade, de Derrida, sabemos que cada repetição leva a novos eventos (1977). De cada vez que se repete um evento, ocorrem também novos significados. Afirmar que repetimos, que começamos sempre pelo meio, qualquer que seja o texto, a obra de arte, não significa que façamos igual, que repitamos sem diferença, na medida em que falamos/criamos em nome próprio e num novo apelo ao Outro.
Ao responder a Narciso, Eco não quebra a condenação de Hera, mas questiona a sua autoridade, ao desenvolver estratégias que contestam essa autoridade; é nesse gesto desafiador e questionador da autoridade de Hera que reside a política? Para Jean-Luc Nancy, a política inventa-se quando a autoridade é questionada.
Talvez Derrida esteja a dizer que o que se repete não seja apenas a língua do outro, mas o apelo, de cada vez que falamos. Como Eco diz “Vem!”, cada palavra é um endereçamento, um apelo. Se o apelo é sempre dirigido a algo que não a si mesmo, e se o Outro é sempre outro, diferente, singular; se o apelo de cada vez se faz num contexto diferente, cada vez que se repete, o apelo é diferente.
A própria assinatura do autor (e não apenas a contra-assinatura do leitor) é já uma contra-assinatura, diz Derrida (1982). A assinatura do autor procura condensar as diversas temporalidades da escrita – escreve-se em diferentes períodos, ininterruptos ou não, numa ordem que dificilmente será a do livro final, revendo o texto em diferentes alturas, etc. – e procurando reter o “ter-estado presente num agora passado, que permanecerá um agora futuro portanto num agora em geral, na forma transcendental da permanência”. Como tal, uma assinatura não é o mero registo de uma marca gráfica: é o testemunho de um acontecimento passado, suspenso de um presente iterativo.
A questão da repetição ganha uma outra dimensão, quando falamos de assinatura. Não se trata já apenas de ver no falar um eco; a própria marca gráfica que é a assinatura, para ser legível, para funcionar, deve ter uma forma repetível, iterável, imitável. Para ser tida como válida (ou “verdadeira”), é preciso que a assinatura seja repetida e repetível, com o mínimo de variações. Regista-se uma assinatura (nos documentos de identificação) e é necessário que ela possa ser repetida futuramente, sob pena de ser tida como falsa. A sua repetição, ainda que de cada vez diferente, atesta a validade daquela assinatura. Repetição como sinónimo de validade, verdade.
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Por exemplo, Jean-Luc Godard.
Fotogramas de Adieu au langage (2014), Jean-Luc Godard
Voltando à afirmação de Barthes de que um texto é um tecido de citações, poderíamos dizer que Godard passa, com alguns dos seus filmes, uma lupa sobre este jogo, revelando-o pela hiperbolização do próprio jogo. Godard diz que é somente um “organizador consciente” das citações dos seus livros preferidos; que apenas cita. Para o cineasta, não existe ontologia no que diz respeito às palavras, é, antes, a partir das realidades, das formas de vida, dos seus usos e dos contextos que ela é gerada. Em praticamente todos os seus filmes, existem citações de outros autores, umas vezes com leituras de excertos de livros, por parte das personagens, outras com frases que julgamos serem escritas por Godard; existem também citações de imagens (para Godard, a palavra é também imagem) de outros filmes (evidente em Histoire(s) du cinéma), usualmente sem referência à “fonte”. Já as imagens que cita (sejam frames ou planos) são mais facilmente identificáveis como não tendo sido filmadas por Godard.
No seu último filme, Adieu au langage (2014), Godard confere um espaço próprio para nomear os autores citados durante o filme, ainda que não possamos saber, aí, o que corresponde a quem. Parece haver aqui uma viragem assinalável, uma assunção de que a palavra “é de outros autores”, e um desejo de tornar isso evidente. Talvez essa mudança aconteça porque Godard esteja, em Adieu au langage, mais interessado em levar-nos a pensar a imagem, o médium cinematográfico (recurso a diversas câmaras, cores muitas vezes invasivas, edição do som com abruptos cortes e variações do volume), do que propriamente o texto e a sua combinação com a imagem. No entanto, ao nomear os autores, ele chama a atenção para o próprio texto, ainda que num momento final, como se nos conduzisse a pensar a palavra, retrospectivamente, tentando identificar o que é de Godard, o que é de outros e por que outros foi escrita. É também o momento em que ao citar – repetir – num novo contexto, combinando imagens e sons com o texto, novos significados se abrem. É o gesto da montagem que abre novos significados.
Georges Didi-Huberman, no seminário “Temáticas aprofundadas de Estudos Artísticos”, conduzido em 2014, no âmbito do doutoramento em Estudos Artísticos, FCSH-UNL, sugere que as citações existem, em Godard, de dois modos: como exercício de modéstia (a voz que faz ouvir é a de outros, a quem reconhece valor e que admira) e como exercício de voracidade (apropria-se, usa como suas, não identifica a fonte, passando a ser o autor, a ter autor-idade sobre o texto e o seu uso). A citação, diz ainda Didi-Huberman, é uma forma que Godard tem de criar algum distanciamento, despersonalizar, criar máscara, separar, fugir à comunicação – estratégia que o filósofo identifica como vinda de Brecht. Muitas vezes, o cineasta recorre a imagens e citações de livros para responder (como aconteceu em entrevista aos Cahiers du Cinéma). Aí, a citação parece surgir como um jogo que impossibilita a continuidade do diálogo, já que não é aberta à discussão – também por não se enquadrar na dualidade verdade-mentira –, diz Didi-Huberman.
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Por exemplo, Agnès Varda. Penso em L’Opéra Mouffe (1958). Nessa curta-metragem, surge uma referência ao quadro “Venus del espejo”, de Diego Vélazquez (séc. XVI-XVII), ocorrendo uma espécie de deslocamento das fronteiras das artes, sendo que um quadro aparece vivo, como se tratasse de uma performance, e uma performance que é filmada e colocada em diálogo – montada – com outras imagens, permitindo um novo significado ao quadro, ao mesmo tempo que o conhecimento prévio do quadro concorre para as significações das imagens na história filmada.
Em 1914, Mary Richardson, uma sufragista inglesa, entrou no museu onde se encontrava o referido quadro e fez 6 golpes na pintura, afirmando que tinha destruído a mais bela mulher do passado mitológico como protesto contra a forma como a líder do movimento sufragista inglês, Emily Pankhurst, estava a ser tratada pelo governo inglês. No filme de Varda, a citação do quadro surge após momentos de intimidade e prazer entre a mulher e o seu amante, o que subverte a leitura do quadro, por lhe conferir um encadeamento (um antes e um depois) que reconfiguram as leituras do quadro. A pintura traz as suas significações para a tela, mas a tela conduz-nos também a um olhar diferente quando voltamos ao quadro. Sem se tocarem, as imagens – a mesma imagem em médiuns diferentes – dialogam entre si e conduzem a significações novas.
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Por exemplo, a repetição como transmissão da técnica corporal. Em “Techniques of the body” (1934), Marcel Mauss define técnicas do corpo como as formas pelas quais, de sociedade para sociedade, o ser humano sabe/aprende a usar o seu corpo. Em qualquer sociedade, afirma Mauss, sabemos, temos de saber e aprendemos o que fazer (com o corpo), em qualquer situação. Partindo da observação de diversas actividades humanas, como nadar ou caminhar, bem como da actividade de exércitos militares, Mauss vai afirmar que cada sociedade tem os seus hábitos (habitus) específicos. A forma de caminhar, por exemplo, não é um produto puramente individual, resultante de mecanismos quase exclusivamente físicos; antes, formam uma idiossincrasia social, na medida em que são aprendidos, especialmente por imitação, repetição. Diz Mauss que somos confrontados, em toda a parte, por uma série de acções que conjugam, em si, as dimensões física, psicológica e sociológica, sendo que essa conjugação é feita pela e para a autoridade social, sendo depois apropriadas pelo indivíduo.
Para o autor, as técnicas corporais são acções que envolvem sempre uma dimensão tradicional, na medida em que não existem técnicas nem transmissão na ausência de tradição, isto é, de anterioridade (diríamos que não existe transmissão sem a enunciação de Narciso). Para o autor, o corpo humano é, ao mesmo tempo, objecto da técnica e meio (“instrumento”) da técnica, daí que as técnicas corporais permitam compreender o contexto (valores sociais, culturais, políticos, estéticos, etc.) que as envolve, ao mesmo tempo que actualiza (reforçando ou contestando) esse mesmo contexto.
Mauss utiliza a seguinte classificação das técnicas corporais: a) divisão sexual das técnicas do corpo; b) variação das técnicas corporais de acordo com a idade e c) de acordo com a eficiência (isto é, de acordo com o resultado do sistema de treino de um movimento, em função do seu objectivo); e d) transmissão das técnicas (formas de treino, imitação, repetição, modos de vida, maneiras, etiqueta, etc.). Foquemo-nos nesta última alínea. O treino, a imitação, a repetição de movimentos corporais, posturas ou gestos, surge como a forma de aprendizagem e transmissão das técnicas corporais.
Por exemplo, as técnicas corporais em dança, no corpo aí construído, configurado, modelado, marcado para um fim. Por exemplo, as técnicas da dança clássica e da dança moderna. Segundo Maria José Fazenda, a partir das suas leituras de Mauss, as técnicas da dança clássica procuram criar um corpo que se projecte como etéreo e inatingível, extensível, alongado, vertical, corpo projectado para o exterior e para o alto (2012). Já as técnicas da dança moderna rompem com esta o privilégio da verticalidade. O corpo passa a contrair-se, dobra-se, torce-se, usa o chão, a horizontalidade. Surge o côncavo e o convexo, as linhas circulares e convexas, em detrimento da exclusividade das linhas rectas e verticais. As transformações nas técnicas corporais são reflexo das transformações contextuais. No entanto, não são meros espelhos dessas mudanças sociais, na medida em que são também o veículo – transportam, criam – dessas mesmas transformações.
Não será de estranhar que em várias aulas de companhias e escolas de dança, ouçamos frequentemente a expressão “exercícios de criar corpo” – “criar corpo”. Um corpo que existe a partir do momento em que incorpora (passo a redundância) gestos que lhe são transmitidos, demonstrados, sugeridos, estimulados. A repetição, a imitação são centrais, ainda que não exclusivas, neste processo de criação de corpo. Cria-se corpo pela repetição de exercícios, pela imitação de posturas e gestos; o corpo aí criado é aquele que vai desenvolver a coreografia (no seu sentido lato de desenho de movimentos); a coreografia é, por seu turno, incorporada por via da repetição. Não parece secundário que os ensaios se chamem, em francês, répétition.
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Por exemplo, o espectáculo de dança “Projecto Continuado (2015)”, de João dos Santos Martins, apresentando em Fevereiro de 2015, na Culturgest, em Lisboa.
Fazendo do próprio processo de preparação e ensaio o espectáculo em si, aquilo a que assistimos é ao trabalho que usualmente antecede o espectáculo. Ao longo de mais de duas horas, um grupo de 6 autores-intérpretes deixa a nu os processos de produção da dança, de um corpo a dançar. Nas palavras de João dos Santos Martins, na apresentação ao espectáculo, disponível no site da culturgest:
Em 2011 tive a oportunidade de participar, em contexto pedagógico, na reinterpretação da peça Continuous Project – Altered Daily (1970) de Yvonne Rainer, a partir de arquivos disponíveis e testemunhos de artistas. Nesse momento, surgiram tensões de trabalho que viriam a materializar-se na peça em si: um processo de trabalho transformado em experiência estética que reivindicava o labor coreográfico enquanto produto artístico. Estava literalmente em causa a forma como um grupo de indivíduos interagia e negociava um conjunto de ações entre si, num processo que tanto era naturalizado quanto induzido coreograficamente. Neste projeto, continuado, damos seguimento a esta “ideia” de coreografia enquanto tecnologia que verifica, ativa e transforma relações entre indivíduos. Recorrendo a objetos da história da dança, aos seus contextos e ideologias, e à sua relação com música, procurámos rever e operar sobre a forma como a coreografia e a dança estabelecem padrões ideológicos que fixam ou colocam em questão os regimes éticos e estéticos dominantes.
O projecto tem como mote a própria citação – Eco – de outros trabalhos da história da dança, uma continuidade dessa (e nessa) história, e uma homenagem (como Didi-Huberman dizia de Godard: exercício de modéstia e homenagem). São citadas coreografias, exercícios e partituras de dança de Doris Humphrey, Loïe Fuller, Yvonne Rainer, Simone Forti, Martha Graham, Trisha Brown e Jane Fonda, entre outros. Mas esta citação passa a ser veículo de experimentação dos bailarinos. Estão a treinar, ao mesmo tempo que actualizam a citação, porque o gesto citado é atravessado pelo corpo que o executa, pela sua história, pela sua vida, pelo seu ritmo – pela sua entoação, pelo tom de voz, se estivéssemos a falar de Eco. Ocorre-me a ideia de tradução, em Benjamin. Neste espectáculo, a citação surge como tradução de um texto – poderíamos dizer isso de todas as citações? Por mais “fiel” e mimético que seja o gesto, o movimento, os acordes, as falas dos intérpretes, estes são sempre uma tadução do texto coreográfico, literário ou musical. O acto executor será, portanto, uma tradução-criação de quem executa.
A poucos minutos de ter iniciado, o grupo de 6 bailarinos entra em palco, ao som do piano, em passos de dança clássica. Termina a sequência de dança, o pianista pára de tocar, o grupo retira-se. O piano reinicia. Volta o grupo, nos mesmos passos de dança, ao som da mesma música. O piano pára, acaba a sequência, o grupo retira-se do palco. O piano reinicia, o grupo volta a entrar, desenvolvendo os mesmos passos de dança que vimos até ali, até que a sequência termina. A sequência repete-se mais 4 ou 5 vezes. Percebemos que estamos a assistir a um ensaio de uma dança clássica e é esse ensaio o espectáculo que nos é dado a ver. A repetição das repetições exigidas para atingir o ideal de perfeição de execução, de corpo, de movimento, de coreografia, mostra a repetição como técnica corporal. De cada vez, a repetição surge-nos como diferente. Para os bailarinos, a repetição permitirá um aperfeiçoamento do gesto. Para os espectadores, permite, a cada repetição, ver diferente do que se viu antes; ouvir a música de outro modo, poder estar mais atento ao que se julga ter perdido na sequência anterior, atentar em determinado gesto, estabelecer um padrão entre os diferentes movimentos, etc. De cada vez igual, de cada vez diferente.
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Por exemplo, o lugar da repetição no ritmo, em Henri Lefebvre. Para chegar à concepção de ritmo e sua análise (Ritmanálise), em Lefebreve, comecemos por uma breve introdução ao desenvolvimento do conceito, com foco no entendimento de Gaston Bachelard, o primeiro a cunhar o termo Ritmanálise, no qual Lefebvre se vai basear. Apesar de parecer haver um entendimento partilhado da noção de ritmo, existem várias definições, algumas contraditórias entre si. Esta variação na definição dá-se de acordo com a área de conhecimento e artística: biologia, filosofia, psicologia, linguística e semiótica, música, cinema, entre outras. Mesmo dentro de cada uma destas áreas, são diversas as perspectivas face ao ritmo.
Por exemplo, Henri Meschonnic e o seu livro Critique du rythme, publicado em 1982. Aí, seguindo Émile Benveniste (1966), Meschonnic propõe o regresso à concepção pré-platónica do ritmo. Desde Platão, o primeiro a definir o conceito (“ordem do movimento na dança e na música”), que o ritmo passou a ser entendido como uma alternância, aritmeticamente organizada, entre batidas fortes e fracas (metron). Benveniste chama atenção para o significado de ritmo antes da definição platónica. Na análise etimológica levada a cabo por Benveniste e retomada por Meschonnic, rhuthmós vem do verbo rhéin (fluir) com o sufixo (th)mόs, o que significa forma, maneira. Deste modo, rhuthmós não só se refere a uma realidade dinâmica, observada no momento do seu fluir, como também se refere à forma deste dinamismo em si. Ritmo é, como tal, uma forma de fluir e não, como a partir de Platão se sugeriu, skhèma, morphè ou eίdos, que se referem a formas fixas e a realidades imóveis.
A análise do ritmo – Ritmanálise – é uma noção cunhada por Gaston Bachelard, a partir dos escritos de Pinheiro dos Santos, desenvolvida no seu livro La dialectique de la durée (1963). Se Pinheiro dos Santos inclui na sua análise o ritmo material, biológico e psicológico, Bachelard vai interessar-se mais pelo ritmo psicológico. A tese central de Bachelard é que a duração não é unitária, coesa nem contínua, tal como Henri Bergson tinha entendido (1908), mas fragmentária e constituída por elementos díspares. Para Bachelard, o tempo é, na sua essência, descontínuo, sendo o instante o elemento temporal primordial. Para o filósofo, o tempo é uma realidade fechada sobre o instante suspenso entre dois nadas. Não existe tempo que não o instante e a consciência desse instante.
Em La Dialectique de la durée, Bachelard defende que tudo é construído por uma anarquia de vibrações, sendo que toda a matéria existe num tempo vibrado. Mesmo em repouso, a matéria tem energia, na medida em que repousa sobre esse tempo vibrado. Esta vibração ou ondulação é sempre dual, sendo o seu atributo operante. Desse modo, se é pela vibração que o tempo opera, então, o tempo é sempre dual e não unitário. A continuidade existe porquanto existe intervenção da consciência e na medida em que os instantes separados são ligados pela viscosidade de sentimentos. Por outras palavras, o tempo é composto por instantes cuja continuidade é criada pela consciência do ser, não sendo a continuidade uma característica essencial do tempo. Em L’intuition de l’instant (1932), Bachelard afirma que os átomos temporais não se podem tocar nem fundir, daí a inexistência de continuidade. Bergson, pelo contrário, entendia que o tempo era uniforme e que o ser é que agiria (originalmente), dentro dessa continuidade temporal.
A concepção de tempo, em ambos os autores, tem, portanto, consequências ontológicas. Para Bachelard, o ser só toma consciência de si no instante (presente), sendo o instante o factor de síntese do ser. Já Bergson entende que o tempo reúne indissoluvelmente o passado e o futuro, ou seja, entende que existe um desenrolar contínuo entre as acções do ser. A vida é, para Bachelard, a descontinuidade dos actos, sendo cada decisão e acção instantânea – da ordem do instante – carregada de originalidade. Diz Bachelard que é o instante que, ao revelar-se, aporta o ser à liberdade ou à sorte inicial do devir. Bachelard insinua, em L’intuiton de l’instant, que a essência do que se designa por duração não é apenas descontínua, mas sobretudo dialéctica, jogando o repouso um papel fundamental. Esta sugestão é retomada, desde logo, no título do já referido livro em que vai aprofundar a sua ideia de Ritmanálise, La Dialectique de la durée.
Chegamos a Lefebvre. Em Rhythmanalysis. Space, Time and Everyday Life (2004), Lefebvre parte também desta noção de duração dialéctica, de Bachelard, para desenvolver a sua proposta de Ritmanálise, uma nova ciência, um novo campo de conhecimento, como o próprio diz, que analise o ritmo, tendo consequências críticas. Uma análise do ritmo, afirma Lefebvre, deverá ser comparativa, não apenas de dois elementos, mas uma análise dialéctica, das contradições (sem que haja síntese), que sempre coloca em diálogo três elementos. O filósofo destaca duas tríades: tempo-espaço-energia; melodia-harmonia-ritmo e sugere conceitos e categorias para uma análise dialéctica: mecânico e orgânico; descoberta e criação; cíclico e linear; contínuo e descontínuo; quantitativo e qualitativo; repetição e diferença – repetição e diferença, sublinhe-se.
Para Lefebvre, existe ritmo sempre que há interacção de um espaço, de um tempo e de um dispêndio de energia. Uma análise do ritmo deverá ter em conta que: a) existem ritmos internos e ritmos externos (sociais); sendo profundamente distintos, não podem ser separados numa ritmanálise; b) existem ritmos naturais e ritmos convencionais (adquiridos, definidos por convenções), devendo ser capaz de os separar para melhor perceber a extensão dos ritmos sociais e como são fabricados; c) o ritmo implica noções de poliritmia, euritmia (quando dois ou mais ritmos estão unidos, num estado saudável) e arritmia (quando dois ou mais ritmos são dissonantes causando sofrimento, patologia; é ao mesmo tempo sintoma, causa e efeito); d) os ritmos podem ser classificados cruzando-os com as noções de secreto/privado e público (ritmos secretos, ritmos públicos ou sociais, ritmos ficcionais, ritmos dominantes); e) o ritmo implica interferência de processos lineares e processos cíclicos (“naturais”). A distinção entre estes tipos de ritmos parece-nos bastante esquemática – como separar inteiramente o “cultural” do “natural”, por exemplo; como distinguir o espaço privado do público, na contemporaneidade? Da proposta de Lefebvre, o que mais nos interessa é a questão do ritmo ser definido como implicando repetição (de gestos, actos, situações, diferenças). Também para Lefebvre, o ritmo define-se pelos movimentos e diferenças dentro da repetição. Quando há repetição, há sempre diferença.
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Por exemplo, o ritmo para Deleuze e Guattari. Em Deleuze e Guattari, o conceito de ritmo é sobretudo desenvolvido em Mille Plateaux (1998), na secção dedicada ao ritournelle (ritornello), ainda que Deleuze se refira à noção de ritmo em diversos textos (como nos escritos sobre Bacon, A Lógica da sensação, publicado em Portugal em 2011, onde o ritmo, na linha das leitura de Friedrich Nietzsche, surge como uma potência vital que transborda todos os domínios do sensível e os atravessa, sendo comum a todas as artes). Nas palavras dos autores, é do caos que nascem os meios (milieux) e os ritmos; existe ritmo sempre que há uma passagem entre um meio e outro, a comunicação entre meios e a coordenação entre espaços-tempos heterogéneos. Meio (milieu) é um termo técnico usado pelos autores que combina vários dimensões: 1) um meio exterior que remete para os materiais (poderíamos chamar de elementos históricos, geográficos, etc., circundantes e exteriores ao indivíduo); 2) um meio interior que remete para os componentes e substâncias compostas (forma “de ser” do indivíduo, tudo aquilo que foi criado na relação entre o indivíduo e o meio exterior); 3) um meio intermediário que remete para as membranas e limites (as membranas são uma espécie de “poros” através dos quais se dão as relações entre o meio exterior e as forças do caos); e 4) um meio anexado que remete para as fontes de energia e para as percepçõess-acções (este meio é um segmento do meio exterior com o qual o meio interior estabelece conexões e trocas energéticas no presente).
Cada meio, dizem os autores, é um meio vibratório, um bloco de espaço-tempo constituído pela repetição periódica do componente. A essa repetição periódica chamamos código, mas cada código é um estado perpétuo de transcodificação ou de transdução. A transcodificação ou transdução é a maneira pela qual um meio serve de base para um outro, se estabelece sobre um outro, se dissipa ou se constitui num outro. Sempre que existe uma passagem transcodificada de um meio para outro; sempre que existe comunicação entre meios ou coordenação de espaços-tempos heterogéneos, existe ritmo, afirmam Deleuze e Guattari. O ritmo emerge do meio de todos os meios: o caos. Uma acção que se dá num certo meio não é ritmo; o ritmo dá-se noutro plano; o ritmo é o que se dá no “entre dois meios”, movendo tais meios, transcodificando-os. Quando o ritmo se torna expressivo, isto é, quando adquire constância temporal e espacialidade, torna-se numa marca e é essa marca que cria o território. A territorialidade (conceito central em Deleuze e Guattari, articulado com os de desterritorialização e reterritorialização) é o acto do ritmo tornado expressivo.
Os motivos territoriais, continuam os autores, formam rostos rítmicos ou personagens. Existe uma personagem rítmica quando verificamos que já não estamos perante uma situação em que o ritmo está associado a uma personagem, sujeito ou impulso. Numa análise do ritmo que parta do entendimento de Deleuze e Guattari, mais do que procurar os ritmos que surgem sempre que surge uma personagem, será necessário procurar os ritmos que fazem emergir as personagens, bem como as paisagens melódicas (não se trata de uma paisagem associada a uma melodia, sendo a própria melodia que faz a paisagem melódica).
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Por exemplo, a repetição em Toute une Nuit (1982), de Chantal Akerman. A repetição é, para Akerman, um instrumento privilegiado para criar significado e imprimir o ritmo ao filme, diz Ivone Margulies (2003). Por exemplo, Toute une nuit (1982), um filme passado durante uma noite de Verão, na cidade de Bruxelas, em que assistimos a um “ballet cinematográfico”, como caracteriza Darlene Pursley (2005), de encontros e desencontros entre cerca de 80 personagens, quase todas elementos de um casal. O que partilham estes casais é o mesmo tempo e a mesma geografia, o mesmo motivo para os seus movimentos (atracção e repulsa), mas as suas histórias não se cruzam. Desses encontros, vemos apenas instantes, fragmentos subtraídos a um encadeamento narrativo, mas reinseridos numa cadeia de gestos coreografados comuns. Cada história surge como uma “mini-ficção”, como sugere Maria João Madeira na folha de sala (2015), aquando da exibição deste filme na Cinemateca Portuguesa, em Janeiro de 2015, no âmbito do ciclo Realizador Convidado – Pedro Costa. Maria João Madeira, citando Akerman, diz que o alinhamento das sequências do filme foi encontrado durante a montagem, “de forma completamente empírica, como penso que acontece quando se faz música; concebemos o filme de forma bastante musical: ouvíamos as imagens (sem os sons) tanto quanto as olhávamos”. A estrutura do filme emerge das conexões temáticas e visuais, dos padrões, das associações, dos gestos e, acima de tudo, das repetições (com variações). A repetição de temas, motivos e movimentos coreografados, permite que o espectador crie ligações entre movimentos aparentemente desconectados; de cada vez que um movimento, corpo ou gesto se repetem, acedemos a um novo olhar sobre esses elementos e sobre outros elementos, já vistos noutro momento do filme, que “repescamos”. A teia de relações emerge no espectador (sugerida pela montagem, mas não se esgotando aí).
A dança e a coreografia surgem aqui não apenas como conteúdo (há momentos de dança entre casais), mas como a própria forma do movimento. O corpo assume uma densidade e uma tensão musculares próximas das do corpo do bailarino. Curiosamente, o visionamento de filmes de Chantal Akerman é uma das ferramentas pedagógicas usadas como técnica de treino de actores, por Antónia Fernandez, directora do Estúdio Teatral Vivarta (um agrupamento teatral cubano). Não será também coincidência que Akerman tenha trabalhado com Pina Bausch, para a realização do documentário Un jour Pina a demandé (1983), estreado no ano seguinte à realização de Toute une nuit. Alguns exemplos (padrões) da aproximação entre Akerman e Pina: entendimento e coreografia de movimento, o corpo e a performance como portadores e criadores centrais do significado (em detrimento da palavra), repetição de gestos:
Por exemplo, a banda sonora de Toute une nuit. O som dos passos, os rumores, os ruídos de trânsito ou do telefone que toca. A mesma música (uma de três) que se repete em diferentes momentos do filme (ver excerto 2 – cena final do filme; e excerto 3), umas vezes como música que toca na jukebox de um bar (onde está em modo repeat), outras vezes, como música ouvida de passagem, ao fundo, na rádio de um carro que atravessa a cena. Essa repetição funciona como uma espécie de cimento que liga fragmentos aparentemente desconexos. Quando ouvimos, pela segunda vez, a música que ouvimos no início do filme, somos levados para essa cena anterior, revivendo-a, repetindo-a, agora com nova significação. De notar que, na cena final (excerto 2), não é apenas a música que se repete, mas os movimentos de dança e algumas frases da personagem, como se a cena final fosse a sinfonia máxima das repetições que caracterizam todo o filme, como se se tratasse de bonecas russas, iguais na forma, nas cores, encaixadas umas nas outras, como histórias dentro de histórias que imaginamos nunca terminarem.
O ritmo de Toute une nuit não emerge apenas da montagem das imagens, da repetição de motivos sonoros, da cadência dos passos na noite de Bruxelas, da repetição de frases, dos padrões imagéticos e sonoros, do aborrecimento que sentimos pela extensão do filme, da velocidade lenta, dos planos fixos, mas sobretudo do movimento dos corpos, da sua tensão muscular, do carregar da narrativa às costas, nos pés, nos abraços. Uma ritmanálise passaria por analisar o movimento da cidade (o exterior e o interior das casas; um ideal de modernidade que tende a basear-se no individualismo e a separar os membros de uma comunidade, isolando-os em casas, e em que os encontros raramente se fazem a mais que duas pessoas ou em multidão). Uma ritmanálise passaria por explorar o conceito de amor subjacente ao filme e que emana do ritmo dos corpos, inseridos numa cidade específica, num continente específico. Em Toute une nuit, o casal surge como figura central da concepção de amor: modelado como amor monogâmico, sem filhos, quase exclusivamente heterossexual. De que modo do ritmo dos corpos, no filme, emana o ritmo social, no que à concepção do amor diz respeito? Por um lado, de que modo esse ritmo dá conta das concepções de amor vigentes e, por outro, de que modo actualiza (reforça ou questiona) essas mesmas concepções? Por exemplo, Anthony Giddens e a sua análise do amor moderno (amor confluente) (1996). Por exemplo, Zygmunt Bauman e o conceito de amor líquido (2003). Por exemplo, Mai e King e o entendimento de que a noção de amor romântico é eurocêntrica (2009).
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Por exemplo, outros exemplos. Por exemplo, haver muitos outros exemplos. Por exemplo, saber que é preciso ainda tirar ilações e consequências das repetições, da sua análise rítmica, perceber a dimensão da diferença nessa repetição, mais do que apenas identificar essa diferença na repetição. Por exemplo, saber que isso se faz filme a filme, articulado com uma análise contextual, cultural, social, política. Por exemplo, saber que se está a meio, mesmo no final do começo pelo meio. Por exemplo, ir continuando pelo meio.
Meio como metade de uma totalidade, meio como ponto equidistante do princípio e do fim. Meio como ponto central. Meio como ambiente. Ter meios, ter possibilidade, ter veículo, ter ponte.
O começo nunca é uma totalidade. Qualquer começo se faz a igual distância do início e do fim de um pensamento. O começo é central. Começar é ter possibilidade de chegar a outro lado.
Começo já noutro lado do meio.
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